Por Kildare Meira

Há um comando expresso na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 12.376, de 30/12/2010) evocando o Judiciário a aplicar a Lei para atender “às exigências do bem comum”. Este postulado se coaduna com preliminares lições que se ensinam nas escolas jurídicas, rendendo homenagem ao Professor Miguel Reale, no sentido de que o direito deve ser encarado e aplicado como fato, valor e norma.
É sob esse prisma da “exigência do bem comum” que, na última semana, a comunidade do Distrito Federal se mobilizou para questionar o resultado útil da sentença da 7ª Vara Distrital da Fazenda Pública na Ação de Improbidade Administrativa (nº 2015.01.1.120126-7), proposta pelo Ministério Público do Distrito Federal. A sentença condenou o Instituto do Câncer Infantil e Pediatria Especializada (ICIPE) – organização do terceiro setor que administra o Hospital da Criança de Brasília José Alencar – à “proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos creditícios” por três anos, a partir da prolação da sentença” e, na prática, se nada for feito no âmbito da 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), onde tramitam os recursos contra a referida sentença, acaba por se inviabilizar a continuidade dos excelentes serviços prestados pelo Hospital da Criança de Brasília José Alencar.
A comoção social que levou milhares de brasilienses e de organizações da sociedade civil da Capital Federal a abraçarem o Hospital da Criança no último dia 18 de abril e fez com que a OAB do Distrito Federal solicitasse a intervenção na referida ação como amigo da causa “amicus curae”, para garantir o pleno funcionamento do hospital, é o reconhecimento de que, no mar de notícias sobre caos na saúde do Distrito Federal, o referido hospital presta atendimento público e gratuito de excelente qualidade a crianças com câncer.
Os números apresentados pelo ICIPE, e confirmados pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal, impressionam. Até agosto de 2016 (apenas nos primeiros 5 anos de funcionamento), são mais de 2 milhões de atendimentos especializadíssimos para pacientes com necessidades de acompanhamento de alta complexidade (crianças com câncer), isso com um quadro de 666 funcionários, 161 voluntários atuando (dado de agosto de 2016), com fornecimento, por meio da parceria com a Abrace (Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias), de transporte aos pacientes e manutenção de uma casa de apoio às famílias dos doentes não residentes em Brasília, isso com uma economia registrada pelo hospital em 2015 de R$ 949.708,66, funcionando com inteira transparência, pois todos os seus dados e prestações de contas estão disponíveis no seu sitio eletrônico (http://www.hcb.org.br/transparencia/hcb-em-numeros#).
Na condição de Presidente da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/DF, tive a oportunidade de dirigir uma diligência técnica no ano de 2016 da Comissão ao Hospital e constatamos a verdade dos números apresentados pela instituição, a forma transparente de sua gestão, e nos foram fornecidos rigorosamente todos os dados de prestação de contas da entidade. Constatou-se a forma humanizada do atendimento do hospital, comparável ao padrão de qualidade internacional que se observa na Rede Sarah Kubistchek, serviço inteiramente custeado pelo SUS mas que não abre mão da qualidade, o que se coaduna com o intenso investimento em pesquisa percebido pela quantidade de alunos residentes que circulam na instituição, tudo isso com uma estrutura que valoriza a segurança hospitalar e o bem estar do paciente e que, se registre, construída inteiramente com recursos obtidos pela Abrace.
É nesse cenário que o Hospital da Criança de Brasília José Alencar tem índices de satisfação de seus usuários que beiram os 100% (variam entre 2011 a 2016 de 95,4% a 98,5%) e é reconhecido pela comunidade brasiliense como um caso de serviço público que funciona.
À margem dessa realidade de funcionamento do hospital do Câncer como um aparelho público que atende “às exigências do bem comum”, surge o Ministério Público do Distrito Federal deturpando o escopo da ação de improbidade, alienado do que pede o interesse público, baseado em formalismos legais que olvidam os valores que orientam a própria existência da Lei de improbidade e atacam o momento de contratação entre o poder público e o ICIPE, a suscitar elementos como falta de comprovação técnica da entidade para sua qualificação como organização social (OS) e ausência de concorrência na contratação, que teriam gerado a alegada irregularidade na contratação da entidade.
Registre-se que o Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDFT) pugnou tanto pela legalidade da qualificação de Organização Social (OS) concedida ao ICIPE, como pela regularidade de sua contratação para gerir o Hospital da Criança.
O fato é que, quando a inicial foi protocolada em 2015, a excelência e capacidade técnica do ICIPE já eram fatos notórios. Sua responsabilidade com o dinheiro público já era aclamada por toda a Capital Federal, mas, mesmo assim, o Ministério Público preferiu se pegar a literalidades.
Infelizmente a sentença, apesar de reconhecer que não há no caso concreto denúncia de corrupção, de recebimento de vantagens por quaisquer das partes e deixar claro que o que se julga é o ato formal de contratação do poder público com o ICIPE e não a execução do contrato, não avança na miopia da ação de improbidade proposta pelo Ministério Público e, ao afirmar todas essas circunstâncias, quase declara que não vem ao caso “as exigências do bem comum”, dando provimento à ação de modo que o resultado útil é a impossibilidade do ICIPE gerir o hospital, fato que já fez o Distrito Federal declarar não ter condições logísticas de assumir a gestão e tentar intervir no processo como terceiro interessado. A sentença não teve sequer o cuidado de modular os seus efeitos no tempo, e parecendo viver num conto de fadas, esperou que o Distrito Federal assumisse a administração do hospital imediatamente, sem descontinuidade dos serviços e sem riscos aos pacientes em tratamento, situação longe da triste realidade que se avizinha.
O fato de o Distrito Federal não ser parte da ação chama atenção, pois o efeito útil da sentença será por este suportado e, em uma análise preliminar, parece conduzir esse processo à nulidade por ausência de litisconsórcio necessário, que ocorre quando alguém que necessariamente deveria constar da ação não foi a ela chamado.
Mas, voltando ao leito da preocupação central desse artigo, “as exigências do bem comum”, a problemática narrada da paralisação do funcionamento do Hospital da Criança José Alencar se insere num contexto nacional de hipertrofia do Judiciário.
E como sair da enrascada de um contexto onde o Judiciário aparece como poder absoluto, pela porta da democracia, reconhecendo que não existe monopólio do interesse público, nem no Ministério Público, nem numa sentença judicial, prestando atenção na mobilização da sociedade, observando que quando a OAB/DF vem a um debate como esse, em defesa da cidadania, e se junta a diversas outras entidades para literalmente abraçarem a causa, é porque o bem comum pulsa nos autos do processo para não deixar formalismos encerrarem um polo de bons serviços públicos a nossa população.
O caso do ICIPE de Brasília é modelo de execução e de boa parceria entre a sociedade civil (por meio do terceiro setor) e o poder público, arranjo legal promissor e já julgado constitucional pelo STF o TJDFT, por meio de sua 6ª Turma Cível. Está em suas mãos uma oportunidade histórica de aplicar a Lei atendendo “as exigências do bem comum”, praticando a democracia constitucional, ouvindo o clamor da sociedade civil organizada e corrigindo, já no próximo dia 24 de abril (haverá audiência de conciliação), os efeitos desastrosos de uma sentença que pode deixar milhares de crianças com câncer sem atendimento.
- Kildare Meira é sócio da Covac Sociedade de Advogados, presidente da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/DF e conselheiro distrital OAB/DF